16 setembro, 2008

Desencontros marcados*


(ou "O que pode fazer a ausência dos verbos")
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"...Os segmentos do tempo se unem uns aos outros num encaixe quase perfeito, mas não totalmente perfeito. Ocasionalmente, desencontros muito leves acontecem. Por exemplo, nesta terça-feira, em Berna, um rapaz e uma moça, os dois beirando os trinta anos de idade, estão parados sob uma lâmpada de iluminação pública na Gerberngasse. Eles se conheceram há um mês. Ele a ama desesperadamente, mas já sofreu muito por uma mulher que o abandonou sem qualquer aviso, e tem medo do amor. Com esta mulher, ele precisa de todas as garantias. Examina o rosto dela, silenciosamente implora-lhe que revele seus verdadeiros sentimentos, procura identificar o menor sinal, o mais acanhado movimento de suas sobrancelhas, o mais vago corar de suas bochechas, a umidade em seus olhos.
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Na verdade, ela também o ama, mas não consegue traduzir seu amor em palavras. Em vez disso, sorri para ele, sem saber do medo que ele sente. Enquanto estão ali, sob aquela lâmpada, o tempo pára e recomeça. Logo depois do intervalo, a inclinação de suas cabeças é exatamente a mesma, o ciclo das batidas de seus corações não apresenta qualquer alteração. Mas, em qualquer lugar das profundezas da mente da mulher, surgiu um pensamento frágil que não estava lá antes. A jovem mulher tenta capturar este novo pensamento em seu inconsciente e, quando o faz, um vazio inescrutável risca-lhe o sorriso. Esta breve hesitação só seria perceptível à mais rigorosa observação, mas ainda assim o ansioso rapaz a percebeu e a interpretou como o sinal que procurava. Ele diz à jovem mulher que não pode tornar a vê-la, volta para seu pequeno apartamento na Zeughausgasse e decide mudar-se para Zurique e trabalhar no banco de um tio. A jovem mulher se afasta do poste de iluminação pública na Gerberngasse, caminha lentamente de volta para casa se perguntando por que o rapaz não a amava."
Trecho extraído de um dos contos no livro "Sonhos de Einstein", de Alan Lightman.

09 setembro, 2008

EU TE AMO!



Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás se fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

- Chico Buarque / Tom Jobim -

05 setembro, 2008

Tratado Manso de Loucura

Como amo a paz de estar comigo!
Essa minha fusão de alma-umbigo,
esse roteiro quente do meu sangue.
Eu que conheço cada palmo dos meus passos,
que me componho e me descompasso,
que me retenho e me disponho.
Faço dos versos meu avesso,
dos adversos, meu passado,
das alegrias, meu recomeço.
Deito liquefeita e de repente
amanheço solidificada.
Sou água, sou pedra,
às vezes nuvem,
às vezes nada.
E por ser mutante e difusa,
enrolo e desenrolo essa vida
num movimento mágico e confuso.
Me certifico e me desacredito.
E admito ser ou não ser
e ser assim.
Mas como é bom sentir-me tão querida,
tão bem-amada e tão dividida,
eu revolvida inteiramente por mim..

Flora Figueiredo*

...há impossibilidade de ser além do que se é -
no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio,
sou mais do que eu, quase normalmente -
tenho um corpo e tudo que eu fizer é continuação de meu começo......
a única verdade é que vivo.
Sinceramente, eu vivo.
Quem sou?
Bem, isso já é demais....

- C.Lispector -


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