20 janeiro, 2010

. O cemitério dos livros esquecidos .


— Daniel, não podes contar a ninguém o que vais ver hoje.

Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.

— Bom dia, Isaac. Este é o meu filho Daniel — anunciou o meu pai.

Está quase a fazer onze anos, e um dia ficará ele a tomar conta da loja.

Já tem idade para conhecer este lugar.

O tal Isaac convidou-nos a entrar com um leve gesto de assentimento.

Uma penumbra azulada cobria tudo, insinuando apenas traços de uma

escadaria de mármore e uma galeria de frescos povoados de figuras de anjos

e criaturas fabulosas. Seguimos o guardião através daquele corredor

palaciano e chegámos a uma grande sala circular onde uma autêntica

basílica de trevas jazia sob uma cúpula retalhada por feixes de luz que

pendiam lá do alto. Um labirinto de corredores e estantes repletas de livros

subia da base até à cúspide, desenhando uma colmeia tecida de túneis,

escadarias, plataformas e pontes que deixavam adivinhar uma gigantesca

biblioteca de geometria impossível. Olhei para o meu pai, boquiaberto. Ele

sorriu-me, piscando-me o olho.



— Bem-vindo ao Cemitério dos Livros Esquecidos, Daniel.(...)

— Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário.

Cada livro, cada volume que vês, tem alma.

A alma de quem o escreveu e a alma dos que o

leram e viveram e sonharam com ele.

Cada vez que um livro muda de mãos,

cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas,

o seu espírito cresce e torna-se forte.

Há já muitos anos, quando o meu pai me trouxe pela

primeira vez aqui, este lugar já era velho.

Talvez tão velho como a própria cidade.

Ninguém sabe de ciência certa desde quando existe,

ou quem o criou. Dir-te-ei o que o meu pai me disse a mim.

Quando uma biblioteca desaparece,

quando uma livraria fecha as suas portas,

quando um livro se perde no esquecimento,

os que conhecem este lugar, os guardiães,

asseguramo-nos de que chegue aqui.

Neste lugar, os livros de que já

ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre,

esperando chegar um dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito.

Na loja nós vendemo-los e compramo-los, mas na realidade os livros não têm

dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém.

Agora só nos têm a nós, Daniel. Achas que vais poder guardar este segredo?

— O costume é que a primeira vez que alguém visita este lugar tem de

escolher um livro, aquele que preferir, e adotá-lo, assegurando-se de que

ele nunca desapareça, de que permaneça sempre vivo. É uma promessa

muito importante, pra toda vida. - Explicou seu pai - hoje é tua vez.





Numa ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai

que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que

realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras imagens, o

eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos

toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou

mais cedo — não importa quantos livros leiamos, quantos mundos

descubramos, tudo quanto aprendamos ou esqueçamos —, vamos regressar.

Para mim aquelas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre

os corredores do Cemitério dos Livros Esquecidos.




Carlos Ruiz Zafón – A sombra do Vento*




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