31 agosto, 2010


Eu já conhecia algumas versões daquele trecho do filme, como personagem e como espectadora. Com atores diferentes, cenários diferentes, outras trilhas sonoras, temperos inéditos para garantir a surpresa, mas a ideia do enredo era uma só: transformação. Aquele era um dos momentos mais delicados e ao mesmo tempo mais promissores da trama, e voltaria a acontecer ao longo da história, outras vezes, outras caras. Cabiam nele o aperto e a perspectiva de mais espaço. Cabiam nele a ilusória perda e a oportunidade de aproximação da felicidade autêntica, essa que já mora em toda gente e não pode ser perdida. Cabiam nele a possibilidade de resistir ao chamado da mudança e a possibilidade de aceitar fluir com ela.

Exatamente naquele ponto do roteiro, a vida estava pedindo à protagonista que soltasse coisas às quais estava apegada, para findar um ciclo, inaugurar outro, reinventar a paisagem. Coisas que não sorriam nem faziam sorrir. Coisas cujo prazo de validade já havia expirado fazia tempo. Coisas que atravancavam o espaço onde o novo poderia florescer. Coisas que já não viviam, senão pelos recursos da parafernália utilizada com destreza pelo apego. Coisas que, embora pudessem falar de pessoas, lugares, situações, falavam, sobretudo, dos seus sentimentos. Das memórias engasgadas. Das dores nunca concluídas. Dos perdões embaraçados. Do mofo, das armadilhas, às vezes da cela nada arejada, da autoimagem.

A deixa para que entendesse a natureza do pedido era a frequente neblina na manhã dos olhos. A interdição das vias de acesso ao entusiasmo. A dificuldade respiratória da alegria de verdade. Os jeitos inventados para garantir alívios de mentira. O emperramento das janelas com vista pra ternura. O turbilhão exaustivo de pensamentos negativos. As vezes todas em que era vítima das circunstâncias sem aparente cota de responsabilidade. A deixa era a repetição de acontecimentos com estreiteza semelhante. Cheiro semelhante. Textura semelhante. Amargo parecido.

Em algumas versões do filme, nessa vez do pedido, a protagonista sequer consegue ouvi-lo, tamanha a espessura das camadas de defesa criadas na escuta. Em outras, ela ouve, entende do que se trata, fica toda atrapalhada porque teme a travessia de um tempo de supostas mãos vazias, e nega, assustada, o coração fechado. Em outras, ainda, ela ouve, entende do que se trata, fica toda atrapalhada porque teme a travessia de um tempo de supostas mãos vazias, mas aceita buscar meios pra tentar, assustada, o coração um bocadinho já aberto.


Ana Jácomo

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