25 agosto, 2012

Um olhar mais apurado





I – Pedagogia dos afetos e traições



Ainda não vi ninguém lendo no núcleo zona sul de Avenida Brasil. Chama atenção o fato de ser Tufão, o craque suburbano, o leitor. Primeiro, Nina sugere para ele a leitura do escritor checo Fanz Kafka. Em sua prosa, o ser degradante que se perde de si sugere o roteiro de Tufão ao perder-se de Monalisa. Mas ele não saca o recado de Nina: ela deseja que, ao ler “A metamorfose” (1915), o craque perceba ser numa barata que Carminha o transforma, impedindo-o de ler o real a sua volta.


Machado de Assis surge, na novela, em dose dupla para “leitores de alma já formada”: “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881) e “Dom Casmurro” (1899). Os dois romances trazem para a narrativa a senha da traição de Carminha. Mas o jogador não se toca. Nina tempera cada vez mais o cardápio literário: manda ele ler de Gustavo Flaubert o livro “Madame Bovary” (1856) – romance que possui o adultério como tema. Nesta prosa onde um médico rural é traído pela esposa, o burguês é um vilão cujos instintos e emoções dão o tom da narrativa.


A educação sentimental de Tufão é lenta, mas sofisticada. A pedagogia dos afetos e das pequenas traições, aplicada por Nina, leciona alguns dos melhores romances da literatura moderna produzida no Brasil e no mundo. Não sei da formação de Nina nem o motivo do seu bom gosto literário. Mas sei uma senha irônica: saída do lixão, ela foi educada na Argentina – país onde leitura de livro é um hábito bem mais cotidiano do que por aqui.


II – Kafka, Machado, Flaubert e Rosa


Depois de ler Kafka, Machado e Flaubert, o craque lê o Guimarães Rosa de “Grande Sertão: vereda” (1956). “Diadorim é a minha neblina” – diz Riobaldo, o personagem que rememora numa prestação de contas infinitamente desfalcada, onde nenhum dos “itens” fecha. Sertão é “onde os pastos carecem de fechos”, sabe o jagunço. Os dados também não fecham na cabeça de Tufão. Travestida de defensora da moral e dos bons costumes, Carminha encarna uma Diadorim que não chove. Sua neblina adia. Engana-se bem quem nela se molha.


Será a próxima leitura de Tufão “A paixão segundo G H” ou outro título da Clarice? “Fragmentos de um discurso amoroso”, do Roland Barthes? Algum romance do Graciliano ou Camus? Sábato, Cortázar, Aira ou Piglia? Quem sabe, o próximo romance do craque seja acompanhado da leitura da própria Nina, cujo rango ele degusta e cuja identidade ele vem assoletrando em pequenos goles.




Nonato Gurgel

Professor do Curso de Letras da UFRRJ 

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